sábado, 25 de maio de 2019

"Isso também passa"



De repente, na vida que nos parecia sossegada e sem atropelos, deparamo-nos com algo inesperado: sentimos que uma mão querida vai ficando para trás, uma pegada que vinha unida vai se apagando ao lado da nossa, ou vemos que uma mudança significativa vem alterar a dinâmica do nosso caminho... Pessoas chegam em nossas vidas, pessoas se despedem de nós. De repente, por exemplo, estamos sozinhos, sentindo-nos descalçados, surpreendidos, assustados. É da lei toda essa movimentação. É da lei que as coisas passem, que os ponteiros do relógio continuem correndo, que os corações batam por um certo tempo, que os ciclos se cumpram, que as estrelas, sóis, planetas, tudo, tudo, se movimente incessantemente. Não há como segurar o que tem, por princípio, nos servir sutilmente e passar: seja uma alegria, que nos preencha com suas branduras, seja um espinho que nos fira a pele, o sentimento.

Faz parte do amadurecimento compreender que assim correm os dias, que assim se cumpre a vida, uma etapa após outra, e faz parte da madureza espiritual dilatar o entendimento sobre a impermanência das coisas, a fim de não intervirmos inapropriadamente no trânsito dos elementos que vêm ter conosco, ou nas vontades alheias, aprendendo que cada coisa tem o seu tempo, cada circunstância cumpre o seu próprio destino quando passa por nós.

É bem conhecido no meio espírita aquele episódio em que Chico Xavier, passando por certas dificuldades que muito o consternavam, perguntou ao mentor Emmanuel se lhe seria possível rogar às esferas superiores um conselho de Maria de Nazaré, que o ajudasse naqueles dias tão difíceis. Passado algum tempo, Emmanuel lhe traz a atenciosa resposta de Maria: “Isso também passa”. Chico contou que essa pequena frase foi, para ele, como uma anestesia sobre a imensa dor que sentia. Tanto bem ela lhe fez, que ele a escreveu num papelzinho e a manteve sobre a cabeceira da cama, lendo-a todas as noites e manhãs. A um amigo que, vendo o papel, também se interessou por copiar a frase, Chico acrescentou: Não se esqueça de que Emmanuel também me disse que ela serve para os momentos tristes, mas também para os alegres. [i]
A nossa própria estada no Planeta é coisa passageira, porque viemos da Pátria Espiritual e aqui apenas vivenciamos mais uma entre tantas experiências no plano material. Se somos assim passageiros, que diremos das dores e das alegrias que nos visitam de tempos em tempos? Diremos que são ainda mais efêmeras, se as olharmos com os amadurecidos olhos do Espírito imortal que somos, e não com a miopia de quem, esquecido da própria natureza, em uma circunstância menos doce só consegue ver algo de decepcionante ou triste, ou diante de outra carregada de significados mais profundos se coloca na posição do despreparado, ou injustiçado e subjugado pela dor.

É fácil, para nós, sentirmo-nos tristes com a saudade que chega (e que tantas vezes retemos demoradamente nos divãs do peito). É fácil, para nós, no estágio evolutivo em que nos encontramos, atender às sugestões da mágoa, da decepção, da reclamação, do medo, do tédio, da irritação quando algo que julgamos negativo esbarra em nós, ou promove uma mudança abrupta e não desejada em nossas vidas... Contudo, precisamos aprender que muitos desses motivos, diante dos quais nos desequilibramos, são também os que nos chegam para treinar nossa capacidade de aceitação dinâmica, que dispara a nossa resiliência e as nossas enormes possibilidades de superação e crescimento, pois eles são, em geral, promotores de avanços e nos chamam para degraus mais altos na escada da maturidade e da compreensão.

É bem certo que tudo passa! Um antigo monarca, num reino distante, desejoso de manter-se sempre em equilíbrio, intentou ter consigo algo que o fizesse alegre, se se sentisse infeliz, e que o fizesse triste, quando se sentisse feliz. Os sábios do reino lhe trouxeram, então, uma mensagem, colocada dentro de uma pedra de anel, ressaltando que ele só deveria ler o que ali estava escrito num momento da mais séria e profunda necessidade, num instante impossível de ser tolerado, num momento em que sua agonia fosse imensa, quando, enfim, ele estivesse absolutamente indefeso, esgotado e nada mais a sua mente lhe pudesse sugerir para fazer. Pouco tempo depois, seu reino foi invadido por inimigos, e o monarca precisou fugir para se manter vivo, passando por graves e sucessivos perigos, mas encontrando novas maneiras de se salvar e continuar correndo, lutando por sua vida. Em dado momento, cercado por todos os lados e sem qualquer chance de escapar, sentiu, enfim, que era chegado o momento de ler o que trazia dentro da pedra do anel, porque a condição para a consulta se achava finalmente cumprida – o momento era plenamente trágico, e a necessidade, francamente imperiosa. Abrindo o anel, leu estas palavras: “Isso também passará”.

Sobre o coração daquele rei, como sobre o coração do Chico, fluidos anestésicos e balsâmicos caíram do Alto, graças ao amparo misericordioso que sempre haveremos de encontrar no nosso caminho. Assim, se agora sofremos, confiemos que o amanhã será menos nebuloso e mais feliz, e que se a dor que nos toca nos parece grande demais, ainda assim aprendamos a seguir firmes e esperançosos, porque Deus nunca nos deixa desamparados nem sozinhos, como recita tão belamente o Espírito Benigna da Cunha, pela psicografia amorosa do mesmo Chico:

“Nas agonias da estrada,

No fel de tormento infindo,

Não esmoreças por nada,

Espera, que Deus vem vindo.”[ii]









[i] Adelino da Silveira. Kardec Prossegue.


[ii] Espírito Benigna da Cunha. Psicografia de Francisco Cândido Xavier. Chão de flores.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Um dia para Inês


Na casa de Inês, o verde de fora vinha para dentro e aparecia em forma de volumosas samambaias que ornamentavam as paredes, enquanto em vasos menores surgia mais tímido, em violetas, beijos, azaléias, miudezas que coloriam a casa desde o alpendre.
Na sala de janta, como chamavam aquele lugar, a mesa era grande. De madeira clara e maciça, ia de um canto ao outro da parede. Os bancos e cadeiras não lhe faziam conjunto, eram de formas, tons e tamanhos diferentes e somavam quinze assentos. Por cima um grande plástico transparente protegia o tampo da poeira do dia, que subia do chão do quintal e da roça. Sobre o plástico esticava-se um enorme caminho-de-mesa vermelho, todo trabalhado em crochê, que deixava cair nas cabeceiras graciosos pingentes da mesma linha. No centro, uma gamela exibia frutas frescas, saudáveis, apanhadas no pomar. Entre as frutas, dois clipes, um laçarote de barbante, um botão de camisa e um tubo de caneta sem tinta.
Mulheres subiam e desciam as escadas que davam na cozinha. No fogão a lenha queimava e Luzia mexia o angu num tacho exagerado. Ferviam outras panelas tampadas. Num canto, longe e só, o fogão à gás, marca Cosmopolita, todo branquinho, assistia inerte. Sobre ele uma toalha também em crochê vermelho e uma compoteira cheinha de ovos frescos. Havia também ali uma mesa e dois bancos grandes e inteiriços como os das igrejas.
Perto da janela miúda havia uma pequena prateleira, afixada por duas cantoneiras velhas, que sustentava um rádio antigo. Em cima dele um toco de vela e uma caixa de fósforos. Na pia grande, cinco frangos abatidos e três enormes pés de alface verdinhos, para o almoço. No alto, o filtro de barro sobre uma pedra mármore. Atrás dele um vidro de Magnésia de Philips, outro de Sal de Frutas. Bem debaixo da torneira, um copo vazio de requeijão continha a gota d'água que caía regularmente.
Inês era uma mulher forte. De fibra, ajudava na roça, cuidava da horta, cuidava dos porcos, das galinhas e, sendo preciso, fazia as vezes de retireiro. Assava broas deliciosas, matava e preparava leitão, enchia linguiças. Quando torrava o café no rancho, ficava vermelha feito pimenta, mas, mesmo suada e cansada, sorria sempre, esbanjando uma felicidade muito natural.
Capricho e simplicidade tinham ali o seu endereço, na casa de Inês. Ela, mais do que todas as suas irmãs, primas e amigas, não tinha dos mimos e segredos das mulheres da cidade. Sua beleza era a que Deus lhe deu. Vivia contando casos e sorrindo, enquanto estava na lida. Hoje, não. Inês hoje parece até outra mulher. Traz no rosto uma papa de açúcar e mel. Os cabelos, enrolados em cachos no alto na cabeça. Inês, hoje, ao invés de trabalhar, dava ordens.
Marino nunca teve ambição. Levava a vida numa mansidão besta. Cuidava da roça, cuidava dos porcos. Era retireiro por profissão. No mais, era homem de comer e beber além da conta. Mais nada. Se visse Inês hoje, com tanta frescura, era capaz de achar errado.
- Ô de casa!
- Ué, Marino – disse Luzia, vermelha de tanto tempo à beira do fogão – ocê não sabe que ver a noiva no dia do casório dá azar?
- Besteira. Cadê a Inês?
- Saiu agorinha. Foi se aprontar e fazer a tal de “maquilage”. Ocê ainda não tirou essa barba, homem? Se apresse, que tá quase na hora.
- Num pé eu tomo banho, faço a barba e ainda engulo dois pratos de janta.
Um sujeito extremamente rude, o Marino. Um homem assim pode se casar em qualquer dia e lugar. Não é de cerimônia nem tem no que pensar. Inês também é rude. Come ovo frito com arroz todos os dias, mas, escondida, traz sempre uma flor no regaço. É mulher. Sonha. Tem no sangue o visgo secular de Branca de Neve. De Bela Adormecida. De atriz de novela das oito no dia em que vai se casar.
Hoje, Inês está que nem uma artista! Seu vestido é todinho branco. Sua boca foi desenhada de vermelho pelas mãos de uma adolescente rica, acostumada com essas coisas. As sobrancelhas ficaram mais finas e foram penteadas. Escondida na nuvem de pó que lhe cobre o rosto, Inês, meu Deus!, parece outra mulher. Os olhos desaguam sem parar e quase estragam toda a pintura. É dia de graça. Salve Deus, nosso Senhor! Salve Santo Antônio! Inês vai se casar.
Uma hora antes de ir para Igreja, Inês foi com a dama de honra tirar umas fotografias num sítio muito florido e arrumado.
Ao chegar à porta da Matriz, Inês está como que anestesiada. Se, quando criança, alguém lhe tivesse contado estórias literárias, ela reconheceria, agora, em si, a Cinderela. Era dia de fada sair de algum lugar e vir encantar dia de noiva. Fadas sempre fazem isso. A noiva dá os seus primeiros passos. Entra na Igreja ao lado do pai, um velhinho que não deu nem um pio, cansado que vinha dos setenta anos de enxada. Inês lá vai... Uns quatro metros de chão, uma légua de pensamentos. Lá vai ela, toda importante, toda especial, nem sabe direito. Vê Marino, aquele jeitão assim-assim, que logo irá beijá-la, ao sinal do padre. Pensa nos filhos que terão, no enxoval que vai sair branquinho do baú. Pensa na festa, no bolo de dois andares que ganhou de um padrinho, nas fotos que tirou no sítio de D. Gracia. Pensa em Juliana, a jovem rica que a maquiou e que está lá na frente, toda orgulhosa da Inês assim, tão bonita. Pensa na mãe, na roupa nova que está usando, nos sapatos que com certeza lhe apertam muito os pés. Pensa em Dinorá, sua maior amiga e num jeito de jogar para ela o buquê. Sorri para o fotógrafo, mas molha o retrato. Tudo tão rápido, tão feliz e tão depressa... Como um flash, tudo passou. Que úmida! Que triste essa tal felicidade!
O sol atrasou bastante o dia seguinte. Marino mal esperou o cantar do galo. Saiu, como sai todo dia, para tirar leite. Sua vida não é outra nem é diferente. Se está morando agora com Inês, se é ela quem lavará suas roupas agora, que diferença isso pode fazer? Inês só acordou diferente na mão esquerda.
No quarto, ainda cedinho, dobrou com silêncio e cuidado o vestido de noiva. Tão branquinho! Tão bordado! Abriu as janelas, foi encerar o chão da casa, lavou roupas, varreu o quintal e já era hora de esquentar para Marino um tacho de frango com macarrão. Rasgou alfaces muito frescas, pôs tudo numa grande tigela de esmalte. Em cima da geladeira, viu um pedaço do bolo da festa. Essas delícias sobraram da véspera. Em Inês sobrava só a mulher do dia.
Numa panelinha, misturou com gosto um punhado de arroz branco com um ovo estrelado. Jogou uma pitada de sal, esfregando os dedos sobre a panela. Não precisava de mais. Comeu ali mesmo, de pé, olhando lá fora o varal. Quase chegava a hora de apanhar as roupas.

sábado, 9 de junho de 2018

Uma música me arrebata



Entrei numa nuvem musical. O solo de órgão, cobrindo de identidade a música toda, lembrando de leve a “Suite nº 3 em Ré Maior”, de Johan Sebastian Bach, segundo alguns, mexe, revolve, acaricia cada uma das fibras em minha alma, que então deram para pulsar, calando meu pensamento agitado. É de uma harmonia triste, sensivelmente bela, e tão marcante na música que, segundo li, o tecladista Matthew Fischer reclamou juridicamente seus direitos autorais – depois de muita disputa, foi reconhecida sua participação autoral, junto com a do vocalista Gary Brooker, líder dos Procol Harum, e do letrista da banda, Keith Reid. 

Milhões de dólares e batalhas de lado, meu interesse está na riqueza dessa melodia, nem um pouco em questões judiciais, questões de ego ou mesmo da letra. Com meu inglês mais do que fajuto, não dei pela interpretação completa do tema antes de ser sequestrada pela melodia. Podemos imaginar, com as licenças literárias de ouvinte, se é que existe uma coisa dessas, que a história contada é a de um contato com a morte. Encontrei duas correntes de entendimento: o tema da morte de alguém por overdose, ou do fato mesmo de morrer. A palavra ‘pale’ significaria ‘palidez’, no primeiro caso, e ‘pala, ou paramento’, no segundo, o que liga o termo ao vestuário das vestais citadas em um dos versos. Francamente, a letra não me impressiona como a música, que poderia ser cantada com lá-lá-lá-rá-rá-rá do início ao fim e continuaria belíssima para meu pouco entendimento, porque continuaria a satisfazer o meu coração e esse sentimento musical renovado que se agita com o movimento recente de novas sensibilidades musculares.

A melodia! Ah, a melodia! É, enfim, o que mais importa nessa canção. Estou falando de “A whiter shade of pale” (1967).

Gary, o belo Gary, empresta à música uma voz que, parece, não poderia ser melhor noivo nesse casamento tão perfeito. Os olhos falantes dele ainda sorriem hoje, no alto de seus 73 anos. Num concerto em 2006, na Dinamarca, sorriram no fim, embora se mantivessem fechados durante quase toda a canção, como que sentindo as emoções da trajetória de uma obra que completava, na época, 39 primaveras, e que figurara na 58º posição entre as 500 mais belas músicas de todos os tempos (2004, ranking da revista “Rolling Stones”).
O baterista foi outro sujeito feliz na trama: os toques, a marcação do ritmo, a preparação bem executada, prenunciando uma nota nova, uma frase forte, um tom diferenciado que então viriam. Alguma semelhança vê o vulgo encantado, como eu, entre o que ele faz e o que faz o baterista que acompanhou Elvis, em “Sylvia”. Meus ligamentos vibram da mesma forma em algumas passagens de ambas. São todas um primor, mas, plenamente seduzida, chego a ouvir “A whiter shade of pale” algumas vezes seguidas, mantendo os ouvidos atentos, ora à bateria, ora ao órgão, ora ao baixo. E muitas vezes a ouço só para ouvir Gary cantar, haha.

Essa música me arrebatou! Arrebatou-me para me mostrar alguma coisa preliminar sobre harmonia, trazendo consigo um instrumento cirúrgico invisível com que ressuscita minhas notas interiores, primárias, desafinadas, endurecidas e surdas para o belo. Bach dizia que a melodia cumpre a missão de “ligar a Terra aos Céus e os Céus à Terra”. Decerto, no concerto cósmico, e bem acima das músicas de minha predileção e arrebatamento, nascem e voam melodias superiormente mais sublimes, mas, no pé do monte onde me encontro, em desafio de longa subida, a música de que falo me arrebatou, parece, para desobstruir meus canais auditivos curtos, carentes e encerados de rotinas. Não a escuto apenas por ter ouvidos. Ouço-a com a alma que instantaneamente dança, sente, vibra, e feito bailarina e menina adentra por estrada nova de significantes e significados! Será isso um exercício? Um mergulho? Um ensaio? Um presente? Com George Harrison, que também tem vindo com sua “guitarra que chora suavemente” confabular comigo nestes tempos, eu cantarei: “I don't know, I don't know”. Eu não sei. Eu apenas sinto.


domingo, 25 de fevereiro de 2018

O quintal de Adélia Prado

Ah! o quintal de Adélia...
Natureza? Está lá.
Mato? Com certeza.
Adélia? Sábia. Simples. Inteira. Intensa.
Poeira no único lugar em que é bendita: quintal.
 
Não sei quanto de meus sonhos
amontoei no quintal de Adélia Prado.
Muitos cavei.
 
Quem me dera uma tarde ali,
vendo o sol entrando por entre aquelas cercas de bambu,
sentindo o mundo entrando sem cerimônia,
em nesgas generosas de luz.
Que cenário é mais apropriado para uma poeta da vida?
O cotidiano curvando-se à vital sombra de árvore,
as sementes brotando a céu aberto,
céu pejado de pássaros,
a lua em sua longa estrada curva,
solta e cheia sobre a cabeça...

Plasmei o quintal de Adélia no mais seguro pensamento.
De vez em quando, fecho meus olhos com um sorriso franco
e - mas ela não sabe - vou entrando com a Ave Maria.
Sentamo-nos ali, na tardinha das coisas,
Eu, a Poeta, o Universo em Poesia.